Uma neurose tão repetitiva quanto porcamente previsível no nosso delicado país é a dissimulação de suas falhas por meio do transporte cirúrgico de um fim distante para o presente. Assim, o objetivo de realizar X ação parece mais alcançável do que realmente o é, refletindo num padrão de atitudes políticas, sociais, ou de quaisquer naturezas, desde que possam se enquadrar em algo minimamente ideológico: nasce daí a manutenção de um discurso simplista para a resolução de mazelas complexas. Já seria suficientemente lamentável se a mania fosse apenas da máquina estatal, mas se a política é arte e a arte imita a vida, façamos a conexão lógica contrária e inevitável: a política só traduz ao âmbito institucional o que fazemos em casa, com familiares e na internet; suspeitar o contrário tende a levar à criação de um inimigo invisível e ao uso de termos abstratos e burocráticos para acusá-lo. A consequência? A impossibilidade da manutenção da dialética aliada ao gosto por discursos inflamados.
Não é de se admirar que essa qualidade se repita na recente discussão dicotômica sobre o uso de inteligência artificial. A tal “Trend do Ghibili”1 revela a nossa incapacidade de raciocínio sobre um tema, carimbando as questões como certas ou erradas num maniqueísmo injusto. Afinal, o uso de inteligência artificial para criação artística deve ser condenado? Sequer pode ser considerado uma arte? As respostas, majoritariamente, enquadram-se como num exame objetivo no qual só duas afirmativas são aceitas: sim ou não.
De um lado, leigos ou pessoas sem tempo para se desenharem. Esses aí querem uma diversão, agindo à mercê da mera curiosidade, afinal, quem não quer se ver num estilo de arte bonitinho? Do outro lado, artistas independentes problematizando — e com razão — a prática, afinal, as horas investidas na criação de uma obra parecem opacas, uma vez que podem ser replicadas em segundos por computadores. Ambos os lados têm pontos consideráveis. Memes replicados são sim engraçados de serem vistos por uma ótica estilística diferente, mas os limites da tecnologia com o confronto criação artística versus geração automática também merece atenção.
No entanto, graças à internet, os influenciadores mais circunspectos no assunto tendem a ser ofuscados pela falsa beleza do alarmismo dos dois lados: o primeiro rechaça o nicho artístico da web, curiosamente sendo essa uma crítica presente em ambos espectros políticos: se parte da direita considera imediatamente qualquer infelicidade dos artistas um “choro da lei Rouanet”, também já foi afirmado pela esquerda que a geração das imagens é um serviço à população carente, pois coisa vilanesca como propriedade intelectual não deveria existir — ironicamente, os prejudicados, artistas da internet, mal ganham em média cem reais por horas e horas de trabalho, e quem recebe o lucro é uma empresa multibilionária!
Concomitantemente, parcela considerável dos ilustradores de repente passaram a tratar a OpenAi e o ChatGpt como figuras demoníacas mitológicas, aderindo repentinamente a discursos ecológicos e compartilhando nas redes sociais a informação sobre “Como gerar imagens com inteligência artificial desperdiça milhões de litros de água” que causa mais alarde, recorrendo ao subterfúgio do fazer bem ao planeta como uma máscara para esconder a frustração pessoal e o medo, afinal, que agronegócio o quê, o problema da água é o ChatGPT!
Aos artistas, entendam: boa parte dos leigos só queria ver como seria o Faustão se tivesse sido animado pelo Miyazaki, e agora estão prestes a tornarem-se mártires digitais. Eles são professores, bancários, políticos, pais e mães de famílias que querem ver o bebezinho numa arte fofa, querem fazer algo bobo… mas que manias bobas não temos? Essas pessoas não querem se apropriar do estúdio, simplesmente querem esboçar um fruto da imaginação sem ter de passar horas trabalhando ou gastando dinheiro, imaginar-se ludicamente dentro de um universo criativo.
Aos leigos: tenham um coração com os aristas. Talvez vocês não saibam, mas é duro passar horas ajustando a anatomia de uma mão, corrigindo pela oitava vez um cotovelo que parece errado sem saber exatamente por quê. O artista humano se pergunta se o sorriso do personagem devia ser triste ou irônico. A IA só entrega os dois. E mais sete variações. Talvez não perfeitas, mas no futuro…? Resumindo: um clique gera o que custou anos para aprender e tornar-se sólido.
Porque é difícil criar. Desenhar não é só aplicação de técnica e correção. Escrever não é só digitar, apagar, digitar de novo. Para cada conto de um escritor há cinco contos descartados. Só temos O Processo, de Kafka, porque seu amigo Max decidiu desobedecer à orientação que recebeu de queimar o manuscrito. Só temos Fantasie Impromptu, de Chopin, porque essa peça foi publicada postumamente. Apesar da qualidade de uma obra, tende a pairar no artista um misto de dúvida e dificuldade no processo criativo, muitas vezes mais difícil que a criação em si. Isso a AI não sabe. Não, nunca saberá. A beleza no fato de que Van Gogh, ao desejar pintar La Guinguette, tenha sido expulso do restaurante pelo dono e, por conta disso, tenha colocado poucos clientes na obra representada2, como uma confissão íntima ao público de que ele ressentia aquilo… Não, essa beleza o ChatGpt não conhecerá. E isso que é belo. Colocamos nossos corações em nossas artes, e isso implica belezas únicas e múltiplas; todo traço é um resultado de algo em nós, e o conjunto de todos eles em algum nível nos explica. Como poderíamos afirmar que Redoma de Vidro não fala nada sobre Sylvia Plath? Quando um robô cria e faz isso, ele não o faz em sua completude, apenas emula. Falta a experiência humana, o sensível, o “ficar dias pensando em trocar uma vírgula num texto”, o “refletir se a iluminação está boa”, o “será que vão gostar?”. Esse íntimo alucinado, paranoico, detalhista, caracteriza-nos. A AI pode criar e recriar infinitamente, mas só porque assim foi instruído. O humano, não; passa décadas construindo, elaborando uma peça da maneira mais bela possível, mesmo que isso seja torturante e nada prazeroso. Ele escolhe sofrer — em nome da arte. E esse enigma talvez faça parte da arte. Não só o quadro, mas o que tornou o quadro ele mesmo. “Ah, mas o resultado final da arte gerada, e não criada, ainda é o mesmo. Ainda é bonita.” parece ser um bom argumento. Mas se só o fim importa, e não toda a história por trás de um quadro, então um prompt do Midjourney e um quadro de Peter Paul Rubens têm o mesmo valor. Esse próprio texto que escrevo — tão maluco e pouco revisado — reforça isso: eu realmente quis abordar de modo técnico a arte (o que explica a forma do início), mas pequei por querer fazer isso por meio da própria arte. Conclusão: a arte consumiu a técnica, o fervor do escritor superou a análise. Eu poderia corrigir, alterar o tom do primeiro parágrafo para criar mais coerência com o resto, ou fazer o contrário: reescrever de modo impessoal e frio; mas sendo essa uma opinião e não uma tese, e sendo eu mais um poeta que um corretor do ENEM, pouco justo isso seria.
A “arte” da IA pode até chegar num nível indistinguível da arte humana. Mas nunca será arte real. Arte é transcendente, é metafísica. É experiência. Mas se isso acontecer, espero que percebamos o quão lamentavelmente vazio nos tornamos, o quão oca é uma paisagem sem um toque de dor.
Talvez o mais inquietante não seja a falha da IA, mas sua precisão. O fato de que ela pode nos imitar com tamanha delicadeza que comove — e, ainda assim, nunca sentiu nada do que simula. A arte, assim, perde sua origem. Torna-se reflexo, não impulso. Resultado, não processo. Este texto foi escrito por um ser humano. Exceto este último parágrafo — criado por uma inteligência artificial. Ele pode soar autêntico. Pode até te tocar. E isso é o mais assustador: funciona. E vai funcionar cada vez mais. Mas mesmo assim, há algo que ela nunca terá. A escolha de criar. A dúvida antes do traço. A hesitação diante da frase. Enquanto houver quem insista em sofrer pelo que escreve, em vez de pedir que escrevam por ele... a arte continuará viva.
Em 2025, viralizou nas redes sociais o uso de inteligência artificial para gerar imagens no estilo dos filmes do Studio Ghibli. Usuários descrevem figuras populares ou amigos, familiares, e recebem ilustrações com o visual do estúdio. A tendência reacendeu debates sobre autoria, uso ético da IA e o valor do trabalho artístico humano frente à geração automática de imagens.