Em alguns momentos da vida, não estamos acordados. Mesmo de olhos abertos, dormimos— num transe profundo — ausentes, realizando movimentos artificiais e sendo guiados pelo imediatismo.
Sorte nossa. Podemos acordar.
Veja bem: todo estudante de escola esforçado quer uma boa nota, todo empenhado universitário quer um bom CR, todo bom trabalhador quer uma promoção, você entendeu. E ter algo é diferente de querer ter. Então batalhamos duro, esgotando o cérebro diariamente em livros e nos abdicando de festas. Quando as férias chegam, nos desligamos.
É ótimo, admitimos, mas só por uma semana. Depois desse período, até queremos voltar a dar duro, mas o ócio nesse ponto já nos enterrou bem fundo. Essa languidez se contém até um evento extraordinário (chamemos assim por enquanto) nos lembrar que a vida existe. O catalisador? Pode ser qualquer coisa. Darei um exemplo: um homem calvo de uns quarenta anos que toca fagote na rua da padaria. Eis o evento catártico da nossa tragédia hipotética.
Uma versão adaptada de uma partita de Bach. De início, o sujeito observa, mas ignora o calvo, pois valia mais seguir o caminho e comer o pão ainda quente que comprara na padaria. Mas como o sinal da rua estava demorando para abrir, foi obrigado a ficar parado. Era como se estivesse seguindo um caminho prescrito por um GPS, mas por conta de um imprevisto, a rota proposta não pudesse ser mais utilizada, e uma nova daria um caminho alternativo. O caminho, dessa vez, era a música.
Por quanto tempo não percebeu, imóvel, uma melodia! A música ressoou, implacável; diferente de qualquer ritmo tribal diário. Ouviu a partita inteira por treze minutos, hipnotizado; até que se deu conta de que o pão já esfriara.
A ideia de que foi despertado de um coma se plantou na mente; por isso, o sujeito retornou à casa quase saltitando. O pão foi lambido de margarina de baixa qualidade. Enquanto isso, baixinho, o som da água do café borbulhando; mais distante, o ruído da obra desagradável do vizinho e, quase inaudível, um cachorro uivando. Sentiu o gosto do dia diferente, atipicamente. Por que tanto entusiasmo ao sentir a textura da massa, o sabor do café, e a cacofonia do dia-a-dia?
Ele ainda não sabe responder, mas a má notícia é que esse estado de espírito acabou rápido. A animação se trata de momento, e ele não teria sido capaz de invocá-la novamente de modo espontâneo, mesmo ouvindo a mesma música. Talvez a palavra certa seja insight, mas eu preferia descrever o fenômeno como um “vislumbre contemplativo da vida”. Até mesmo o desgastado self-awareness soa incompleto, pois quem experimenta a sensação, sim, está consciente de si… mas não só de si.
Como buscar tal sensação mais vezes? é a pergunta famigerada. Mas acontece que isso não se busca; se ganha. Assim como só há o prazer de beber água pelo fato de existir sede, só contemplamos o cotidiano porque quase não o fazemos. E quando queremos contemplar, nem sempre a vida está exibida o suficiente para se mostrar para a gente. Às vezes ela aparece, às vezes ela está tímida. Mas o importante é que estejamos dispostos sempre para olhá-la com agrado, sem esperar nada em troca, para que não percamos uma dessas oportunidades em que ela nos dá de beber um pouco de suas belezas. Talvez, assim, com essa humildade, ela nos presenteie mais frequentemente com sua presença inescapável, inescrutável, inenarrável — e todos os outros adjetivos que a o léxico é incapaz traduzir da semântica sentida. Pois quando se trata de descrever o verbo — o que é, o que se transforma — até mesmo o escritor não encontra auxílio nos dicionários.
Vivamos!
Rossini, o grande músico e compositor clássico, em um encontro com Allan Kardec no mundo espiritual, tece interessante conceito sobre o poder espiritualizado da música. Diz ele que " a harmonia expressa pela música coloca a alma sob o poder de uma sentimento que a desmaterializa".
( Gioachino Rossini - Música Espírita - Obras Póstumas - Allan Kardec)
Isto significa que a harmonia, expressa pela boa música, acelera nossas vibrações, permitindo-nos sentimentos de acesso espiritual a dimensões que não conseguimos alcançar comumente.
Portanto acredito que a música o levou a uma outra dimensão. Mas não é somente o som que pode fazer essa conexão. Cada um tem o seu gatilho como : filmes, paisagens, odores etc.
Cuidado: se a frequência da música for muito " baixa" ...
Ode ao ocio